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Duplo grau de jurisdição e Redução de recursos

O duplo grau de jurisdição é um princípio constitucional. Ainda que não figure explicitamente na Constituição é considerado uma garantia constitucional.

Este princípio garante a possibilidade de revisão, por meio de recurso, de decisão proferida em atividade jurisdicional. O direito processual moderno entende que a análise da matéria em discussão não precisa ser necessariamente revista por jurisdição superior àquela que proferiu a decisão, podendo ser reexaminada “por órgão jurisdicional do mesmo nível do setenciante”[1].

Ainda que postulado constitucional, não é ilimitado, podendo ser restringido de acordo com a lei.

“Não se trata de uma garantia plena, ou seja, que deva ser aplicada em todas as decisões. Se o direito processual garantisse o Duplo Grau de Jurisdição em todas as decisões, o processo passaria a ter caráter protelatório, desrespeitando outros princípios também fundamentais do processo. (...) o processo se perderia no tempo e não atingiria seu fim”.[2]

Historicamente, o princípio do duplo grau de jurisdição está ligado a concessão do direito de apelação, dado pelo rei português D. Afonso III. O rei incentivou o sistema recursal pois, com a organização burocrática da magistratura, a apelação diluía o poder das decisões dos magistrados e colocava-o como senhor da decisão final, estendendo seu poder.

O Brasil adotou o princípio português do duplo grau de jurisdição na Constituição Imperial de 1825 – a primeira Constituição brasileira – e, ainda que esta tivesse inspiração do pensamento iluminista europeu, há que se lembrar que a disposição de direitos e garantias fundamentais na Constituição não impediu o Brasil de ser um país escravocrata até 1988.

Acolher tal princípio em nossa Constituição não é garantia de segurança jurídica.

Há muitos casos em que a possibilidade de apelação garante somente a possibilidade de protelar o processo, prejudicando a satisfação da justiça e o interesse da parte.

Além disso, há que se considerar que o juiz de primeira instância é o juiz mais próximo da comunidade, inserido na rotina de sua comarca e conhecedor da cultura local, logo, mais próximo de seus pares. O juiz monocrático tem, muitas vezes, maior possibilidade de decidir com eqüidade.

Exemplo destes casos são conflitos de vizinhança, de prestação de serviço e outros que também tenham pequena complexidade no campo de direito material.

Portanto, só deveriam ser passíveis de recurso as decisões que tivessem sido afetadas pela: (a) parcialidade do juiz; (b) incerteza ou ofensa à letra da lei; ou (c) improbidade.

Admiti-se a parcialidade do juiz quando há fundado receio de sua decisão ter sido motivada por algum interesse particular, não sendo isenta; considerar-se-á incerteza ou ofensa à letra da lei quando o juiz proferir decisão manifestadamente contra dispositivo legal, ou quando este dispositivo for dúbio, dando margem a mais de uma interpretação legal; a improbidade se manifestará quando houver dúvida legítima sobre o comportamento ético do magistrado, havendo suspeita de corrupção ou uso de artifício desonesto que macule a decisão proferida.

Excluindo-se esses casos, não há motivo que justifique a revisão de decisão proferida de acordo com lei unívoca. As sentenças meramente homologatórias e aquelas que exaurissem em si mesma a função jurisdicional (ou seja, respondem adequadamente e de forma exaustiva ao pedido formulado) não seriam passíveis de recurso.

O direito da parte de obter uma segunda avaliação do seu caso em particular não deve ser mais importante que o direito da sociedade de uma eficaz e oportuna prestação jurisdicional.

Note-se que não se fala em má qualidade da prestação jurisdicional em nome da celeridade, mas sim em adoção de um sistema lógico que responda aos anseios da sociedade, lembrando que, como já dito, o magistrado de primeiro grau é mais próximo de sua comunidade e, portanto, mais permeável aos anseios desta.

A adoção destas medidas não fere o princípio do duplo grau de jurisdição, uma vez que a restrição do princípio mediante dispositivo legal é perfeitamente cabível. Ao contrário, asseguraria a efetividade da prestação jurisdicional, corroborando os princípios que garantem a segurança jurídica do processo.

Não é possível falar em redução de recursos sem falar em Súmula Vinculante e Súmula Impeditiva de Recursos.

Súmula é o entendimento do Poder Judiciário acerca da interpretação de determinada lei frente a casos concretos; a súmula, portanto, pressupõe sempre a existência da lei. A súmula tem caráter jurisdicional e interpretativo, mostrando o alcance e a direção de lei anteriormente analisada.

A E.C. n°45 aprovou a chamada ‘Súmula Vinculante’. Trata-se de dispositivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal emitirá seu entendimento a respeito de matéria legal controvertida. Essa interpretação da lei pelo STF terá efeito erga omnes (significa dizer que vale para todo mundo) e vinculará as decisões de instâncias inferiores, uma vez que o STF não admitirá decisões contrárias às súmulas.

A Súmula Vinculante é, em termos gerais, a imposição de regras genéricas para a coletividade.

Aqueles que são favoráveis ao instituto da Súmula Vinculante argumentam que este combate a morosidade processual e traz segurança jurídica em relação a decisões judiciais.

Como já visto, há outras formas de combater a morosidade processual que não atingem a independência do juiz e a sua liberdade de interpretação; e a segurança jurídica seria, na verdade, o congelamento de certas decisões genéricas que poderiam ou não se moldar a cada caso concreto, impedindo o cidadão de ter seu direito analisado pelo Poder Judiciário.

O Brasil tem dimensões continentais e a decisão proferida por uma instância federal sobre um caso concreto pode não atingir a todos da mesma maneira, impedindo que as partes de um processo tenham seu direito de acesso ao Judiciário assistido.

“De fato, se o direito é um instrumento flexível e capaz de adaptar-se aos valores considerados prioritários pelo juiz, não será necessário, em tal perspectiva, que o juiz decida em função de diretrizes vindas do governo, mas em função dos valores dominantes na sociedade, sendo sua missão conciliar com esses valores as leis e as instituições estabelecidas, de modo que ponha em evidencia não apenas a legalidade, mas também o caráter razoável e aceitável de suas decisões.” [3]

Cabe ainda considerar que os ministros do Supremo Tribunal Federal não têm legitimidade para emitir regras genéricas para a coletividade, pois isto seria legislar. Somente representantes de Poder Legislativo, através do voto popular, tem legitimidade para tal ato.

Isto significa que a cúpula do Judiciário estará legislando cada vez que emitir uma súmula. A edição de súmulas pelos magistrados, portanto, não é legítima.

A edição de Súmulas Vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal viola o princípio de tripartição dos Poderes, previsto no art. 60, § 4° da Constituição Federal:

“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.”

Atenta-se ao fato de que o Supremo Tribunal federal é responsável pelo julgamento de matérias constitucionais, e desta forma as súmulas editadas por esta Corte têm força de norma constitucional.

Com exemplo ilustrativo, cabe isolar um caso rumoroso e recente:

“o da possibilidade (ou não) de se realizar os abortos para as gestantes que já contam com laudo que atesta a existência de desenvolvimento de feto desprovido de massa encefálica. Sem que adentremos ao mérito de tal polêmica, pensemos numa questão importantíssima: quem ficaria sujeito a tal decisão? Todos os tribunais e todos os magistrados, indiscutivelmente. Igualmente, contudo, teríamos os médicos dos serviços públicos de saúde (incluídos no conceito de administração) que não mais poderiam realizar esses abortos, ainda que indicados no caso concreto. A regra de vinculação é extremamente clara e tem força que, convenhamos, supera em alguns aspectos a da lei, pois a lei pode ser interpretada e a decisão não: terá eficácia erga omnes e efeito vinculante aos demais juízes e administração”.[4]

Ainda, qualquer proposta de revisão ou cancelamento para afastar uma súmula considerada prejudicial deverá ser analisada pelo próprio Supremo Tribunal Federal (os mesmos que a editaram), tornando-o ditador de suas decisões.

Há também que se falar na obrigatória padronização de decisões em instâncias inferiores, impedindo os juízes monocráticos de decidir de forma contrária à matéria sumulada.

Os juízes monocráticos estão mais próximos de sua comunidade e têm melhores condições de decidir um conflito de maneira equilibrada, atentando para as mudanças sociais da sociedade a qual pertencem. Ao extrair dos magistrados de primeira instância a capacidade de decidir livremente, está se tolhendo a oportunidade de renovação e adaptação do direito.

O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, entende que o juiz tem de interpretar a lei de acordo com o local e não pode ficar vinculado a uma súmula já pronta com toda a rigidez apesar de agilizar o tramite judicial dos processos instaurados no país:

“Sem dúvida, a súmula vinculante eliminaria parte dos recursos que atrasam os processos, mas é um remédio com um efeito colateral. Tal decisão tem um custo caro e engessa o direito. Nosso sistema jurídico ainda está em construção”.[5]

Com a adoção da Súmula Vinculante o princípio da independência do juiz é violado, pois este já não tem mais autonomia para decidir livre de qualquer influência, externa ou interna ao Poder Judiciário, não devendo estar subordinado a nada exceto à lei, às provas dos autos e sua consciência.

Cabe também considerar que, sendo emitidas pelo Supremo Tribunal Federal, que tem seus membros nomeados pelo Poder Executivo, estarão essas decisões atreladas a interesses políticos, afastando cada vez mais o Poder Judiciário de ser um Poder autônomo.

A Súmula Vinculante é um equívoco em termos legais, e uma forma de induzir politicamente decisões judiciais.

As súmulas impeditivas de recursos são uma variação da Súmula Vinculante; nas palavras do Deputado José Eduardo Cardozo, em sua justificativa da proposta de emenda à Constituição Federal, as súmulas “impedem a interposição de recursos contra sentenças ou acórdãos que expressem a mesma orientação sumulada. As decisões que contrariem o definido nestas súmulas poderão receber recursos que terão normal tramitação e apreciação pelos Órgãos do Judiciário”.

“A súmula vinculante impede que juízes de instâncias inferiores decidam de maneira diferente do Supremo Tribunal Federal nas questões definidas pelos ministros. A súmula impeditiva de recursos permite que se decida de forma diferente, mas guarda a possibilidade de recursos. Se a decisão segue a jurisprudência firmada pelo tribunal superior, o recurso não é analisado.”[6]

A proposta de Emenda Constitucional n° 377/2005 tem a seguinte redação:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria, aprovar súmula que, a partir de sua publicação, constituir-se-á em impedimento à interposição de quaisquer recursos contra decisão que a houver aplicado, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida pela lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada originariamente perante o Supremo Tribunal Federal por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º São insuscetíveis de recurso e de quaisquer meios de impugnação e incidentes as decisões judiciais, em qualquer instância, que dêem a tratado ou lei federal a interpretação determinada pela súmula impeditiva de recurso.”

Justifica o Deputado que “com esta medida se busca solucionar o problema decorrente da interposição excessiva e repetitiva de recursos, sem que se subtraiam a independência e a indispensável liberdade decisória dos magistrados”.

No entanto, a diferença entre as súmulas impeditivas de recursos e as Súmulas Vinculantes é tênue, já que decidindo contra a súmula, o magistrado terá sua decisão revista a favor da mesma, pois esta decisão já estará solidificada e, decidindo em favor da súmula, ainda que erroneamente, a parte sucumbente não poderá mais questionar a decisão.

“(...) a questão fundamental [da adoção das súmulas impeditivas de recursos] recai sobre a própria natureza dos tribunais de cúpula do Judiciário e sua legitimidade ou não para dar a última palavra sobre determinados tipos de causas”. [7]

Pelos mesmos motivos apontados ao tratar das súmulas vinculantes, o Poder judiciário não tem legitimidade para aplicar uma norma com força erga-omnes.

As súmulas impeditivas de recursos inibem a atuação desimpedida do juiz e, da mesma forma que a Súmula Vinculante, concentra nos membros do Supremo Tribunal Federal o poder final e perpétuo de interpretação das leis, como que legislando indiretamente.


[1] Lima, Carolina A. de S. O duplo grau de jurisdição e os direitos e garantias fundamentais. p. 4

[2] Idem. p. 159

[3] Perelman, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. p. 200

[4] Vigliar, José Marcelo. A Reforma do Judiciário e as súmulas de efeito vinculante.

[5] Busato, Roberto. In Liberdade de decisão

[6] Haidar, Rodrigo. A reforma continua.

[7] Sadek, Maria Tereza. Reforma do Judiciário. p. 43

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